O ‘Digital Omnibus’ da UE alivia a pressão regulatória sobre o setor AdTech, mas reforça o poder das Big Tech
A Comissão Europeia apresentou a sua proposta Digital Omnibus, um pacote de 153 páginas que reordena e ajusta boa parte do enquadramento normativo construído em torno da economia digital desde a entrada em vigor do RGPD. O objetivo oficial é claro: reduzir pelo menos 25% das cargas administrativas (35% no caso das PME), eliminar sobreposições entre normas e tornar o ambiente europeu mais atrativo para o desenvolvimento de produtos baseados em dados e IA.
Na prática, o Omnibus pretende funcionar como um grande “recalibrar” do sistema. Não revoga o RGPD nem as leis já aprovadas (DSA, DMA, AI Act, Data Act, ePrivacy, NIS2, etc.), mas ajusta definições, harmoniza obrigações e dá mais margem para determinados tratamentos de dados, sobretudo quando são pseudonimizados ou usados para treinar modelos de IA. O resultado imediato para o ecossistema publicitário e de marketing é uma sensação de alívio regulatório, combinada com a constatação de que os principais beneficiados continuariam a ser as plataformas com maior escala de dados e capacidade de cumprimento.
Uma das mudanças mais relevantes chega com a definição de “personal data”. Até agora, a interpretação expansiva do RGPD levava a tratar praticamente qualquer identificador como dado pessoal pleno, mesmo quando não existia um vínculo razoável com um indivíduo identificável. O Omnibus escreve na lei a doutrina do TJUE e clarifica quando identificadores pseudonimizados devem ser considerados dados pessoais e em que condições. Sinais que não podem ser vinculados a um indivíduo sem informação adicional — como determinados IDs hasheados ou variáveis derivadas de modelos estatísticos — poderiam passar a ficar sujeitos a obrigações menos rigorosas em certos contextos. Para anunciantes, agências, DSP, SSP, DMP ou CDP, isto abre a porta a recuperar técnicas de modelação e segmentação que tinham ficado quase impraticáveis devido ao risco legal.
O segundo grande bloco afeta o treino de sistemas de IA. O Omnibus introduz uma base jurídica específica que permite treinar modelos com dados pessoais ou pseudonimizados desde que sejam aplicadas salvaguardas adequadas e documentada a mitigação de riscos. Este movimento legitima a recolha e uso em larga escala de datasets para IA generativa, um território onde reinava profunda incerteza. Na prática, os grandes desenvolvedores de IA (Google, Meta, Microsoft, Amazon, OpenAI, etc.) são os mais bem posicionados para tirar proveito desta abertura.
Segundo Digiday, o pacote tenta ainda resolver um dos problemas mais discutidos pela indústria: a sobreposição de normas e a fragmentação de obrigações. O Digital Omnibus alinha melhor o RGPD com a ePrivacy, distinguindo com mais precisão que tipos de acesso ao dispositivo exigem consentimento expresso e quais podem basear-se noutras fundamentações legais. Operações ligadas à segurança, medição básica ou certas funções técnicas ganham clareza, o que poderá reduzir o “ruído” dos banners de consentimento e estabilizar a medição. Para empresas de analítica, verificação ou atribuição, isto representa um ambiente mais previsível e menos ambíguo.
Em paralelo, a proposta consolida o Data Act como o grande quadro unificador das questões de partilha de dados, portabilidade, interoperabilidade e acesso a dados do setor público. Vários marcos prévios são integrados ou harmonizados sob esta lei, com o objetivo de simplificar obrigações e evitar contradições.
A simplificação também chega à cibersegurança. Em vez de reportar incidentes a múltiplas autoridades, as empresas terão um sistema de notificação unificado, algo particularmente relevante para grandes plataformas, operadores essenciais e grandes intermediários, que reduzem custos de coordenação sem aliviar as obrigações materiais.
O padrão de vencedores e vencidos é claro: as grandes plataformas e empresas de IA surgem como as grandes vencedoras. Têm escala, dados próprios, poder computacional e equipas jurídicas capazes de aproveitar as flexibilidades desde o primeiro momento. Os anunciantes recuperam ferramentas de segmentação e medição, e as agências beneficiam de menos incerteza regulatória e menos fragmentação entre países. Já para o AdTech intermédio (DSP, SSP, CDP, DCR, medição…), o balanço é ambivalente: ganham segurança jurídica, mas enfrentam um mercado em que identidade, dados, dispositivos e IA estão cada vez mais concentrados.
Para os publishers, o impacto é misto. A redução da fricção nos banners de consentimento pode melhorar ligeiramente tráfego e experiência do utilizador; mas, se o controlo da privacidade se mover para navegador, sistema operativo ou dispositivo — algo que o Omnibus facilita — os meios podem perder capacidade de negociação direta sobre dados e segmentação, replicando dinâmicas vistas com o ATT da Apple ou o Privacy Sandbox da Google.
A proposta reavivou o debate entre defensores da privacidade e a indústria. Organizações civis alertam que o Digital Omnibus representa uma erosão prática do RGPD, ao estreitar a definição de dado pessoal e permitir mais tratamentos sem consentimento. Por outro lado, muitos especialistas veem o pacote como uma atualização necessária que corrige excessos e torna o sistema aplicável sem mexer nos princípios fundamentais.
A Comissão insiste que não se trata de um retrocesso, mas de um ajuste para preservar “os mais altos padrões de direitos fundamentais” enquanto cria um quadro mais claro e eficiente. A realidade estará algures no meio: o Omnibus não revoga nem esvazia o RGPD, mas abranda a cultura de cumprimento maximalista, especialmente no uso de dados pseudonimizados e treino de modelos de IA.
Quanto aos prazos, o calendário é difuso. O Omnibus tornar-se-á lei pouco após a publicação, mas o impacto real será gradual e desigual. Reguladores terão de atualizar orientações, autoridades harmonizar critérios, organismos rever especificações técnicas, e as empresas adaptar sistemas e contratos. As estimativas apontam para um impacto prático entre 12 e 36 meses.
Para a publicidade e os meios, o recado é duplo: abre-se uma janela para recuperar sinais e estabilizar a medição, mas essa mesma janela reforça a liderança das grandes plataformas em identidade, IA e experiência de utilizador. O Digital Omnibus promete menos fricção regulatória, mas desenha um cenário onde a vantagem competitiva dependerá cada vez mais de first-party data, capacidade de treinar modelos avançados e posição na cadeia de valor.

